O propósito de elaborar um projeto de exposição de pinturas de Claudinei Bettiol fez-nos contemplar as muitas obras inéditas do artista num processo que durou (e ainda prossegue)
meses. O recorte deste projeto emergiu desta contemplação sem grande dificuldade pois as obras mesmas impuseram sua narrativa.

Franqueza e sinceridade, nada de ocultamentos nem rodeios. Assim é a arte de Bettiol, expressão de honestidade, em primeiro lugar, consigo mesmo. Esta é a primeira característica que salta de todas as suas pinturas, sem exceção. Nenhum momento de ocultamento ou de parecer o que não é. Nada de disfarces, nada de “cosmetizações” nem de “higienazições”. Nenhuma concessão ao que o público possa se agradar facilmente, nem ao crítico, nem a ninguém. Fidelidade a si mesmo, e não se trata de egocentrismo, mas de um autocentramento necessário a uma pessoa com uma história pessoal pesada, com a qual muitos se veriam como vítimas de um  destino infeliz. Abandono familiar na infância, miséria, o crescimento com um tio artista que o criou mas que o maltratou também, drogas, alcool, desajuste, delinquência, e uma redenção, enfim, através da arte.

Foi a arte que o “salvou” e continua salvando. Sua poética é a da produção como forma de sobrevivência. Pintar faz parte de sua vida e isso significa mais que uma simples atividade. Sua psiquê encontrou a arte como linguagem de reorganização interna, mais do que expressão, mais do que catarse. Para o artista, a pintura é muito mais que arteterapia. A pintura é um processo de meditação, que visa alcançar autoconhecimento e mudança.

O autorretrato que Bettiol apresenta nas várias obras da exposição não é só do rosto. Partes do corpo, órgãos internos, como o coração, também são autorretratos. Mais que o estado emocional ou somente uma ilustração de uma episodio de sua vida, é o estado de alma, o holon (o ser integral – carne, espírito, intelecto) que é retratado aqui.

A recorrência de ossos, sangue, veias e artérias em suas pinturas são um lembrete de nossa condição mortal que inclui a dor e a morte. Embora seja automática a associação com a morbidez, não é por gosto sádico nem prazer macabro que Bettiol utiliza esses elementos. Sua presença é um uso simbólico, arquetípico, ancestral, uma recordação a si mesmo, no processo de organização interno de imagens, da dor e da mortalidade humana como elemento obrigatório da beleza da vida. Além disso, o cromatismo que esses elementos permitem também são importantes para ele. Nas suas palavras, “as cores ajudam a dar vida, a recriar criaturas que vi no meu trabalho: vermes nascendo no meio de um caldo orgânico em decomposição, restos do laboratório em que trabalhei por anos. As imagens desses vermes me perseguem ainda, e dar cor a eles ajuda a reorganizar no meu interior minha lembrança deles, para transformar tudo isso em algo positivo”.

A ambivalência entre figura e fundo também faz parte de sua poética. Em vários momentos o modo como trata os planos lembra a maneira cubista de fazê-lo, mas é a única referência dessa escola em seu trabalho. Bettiol é mais influenciado por Kandinsky e Miró, dois artistas cuja obra viu desde criança em sua infância vivida com seu tio, também pintor. Bettiol copiava reproduções de obras desses dois artistas que o tio lhe passava; e assim, sem saber o que eram ou o que representavam na História da Arte, cresceu com essas influências, que soube, no entanto, incorporar na sua fatura com bastante autonomia e personalidades próprias. Então, o fundo e a figura são complementares e embora sugiram em alguns momentos planos diferenciados, o espaço ali não é físico e sim psicológico. Não se deve enganar com negros e azuis escuros como um fundo, que não só sombras, mas locais obscuros do inconsciente, de memórias apagadas mas que ainda influenciam o cotidiano, de instintos reprimidos ou de traumas dolorosos demais para serem trazidos à luz, mas que marcam sua presença dessa maneira. Sendo assim, o que seriam “figuras em primeiro plano” entremeiam-se, num cipoal cognitivo / sensorial, com veias que variam de cor a cada obra ou tríptico, gotas de sangue, órgãos que não se reconhecem, fetos, figuras
arquetípicas, muitas vezes com ligações com o fundo obscurecido, às vezes surpreendentemente luminoso.

Das obras presentes na exposição, os “Autorretratos” são os mais próximos da tradição da História da Arte, partem do rosto do artista e o leva para algo mais complexo do que a relação comutativa imagem “fotográfica” do artista = imagem “psicológica” do artista. É muito que a impressão retiniana que possa provocar no espectador, essencial mesmo é o processo da pintura que leva o pincel e as tintas a completarem essas figuras que parecem atormentadas, que mostram em suas cores a dor da mudança e do amadurecimento. “Autorretrato com dor” tem referência num episódio autobiográfico do artista, em que sofreu um acidente em um dos olhos, mas a dor aqui não é só a física. A suspensão do uso das veias e artérias mostra a intensidade da dor nas linhas retas que fazem um zigue-zague dentro da figura humana. “Autorretrato sem máscara”, um resumo da atitude de seus quadros e escolhido para nomear a exposição, mostra dualismo em luz / sombra, artéria / veia, mas também nos contrastes entre vermelho / azul, dependência / autonomia. “Agonia” mostra mais dor com veias negras, que conduzem substância que possa ser traduzida como o “fundo inconsciente” tratado acima. E também usa amarelo, uma cor pouco presente nas obras do artista. “Estudo de objeto humano” remete a um coração. O
fundo luminoso, translúcido, é aquoso e sugere vida, aliado ao sangue que quer dizer o mesmo: vida palpitante, vida que circula.

Os dois trípticos “Ciclo Orgânico (da Carne)” e “Vermelho” são desenvolvimentos dos autorretratos.

“Vermelho” mostra uma figura retraída, que faz parte dos elementos brancos e vermelhos. O estranho que somos nós mesmo, representado pela figura escondida, entremeada à névoa, fantasmas, galhos de árvores, elementos ancestrais de insegurança.

“Ciclo Orgânico (da Carne)” apresenta, à maneira dos retábulos medievais, uma figura central que é ladeada por duas outras que a complementam. Dos órgãos e da carne apresentados nas laterais, surge um novo elemento, um bebê em crescimento, que representa um renascimento, um episódio na vida do artista representado por essa transmutação em novo ser.

A obra “Ave Morta” mostra uma ave caída, com as pernas para cima. De forma contraditória, o fundo branco, radiante, sugere uma redenção na morte, assim como suas penas brilhantes. “Batalha do Pássaro Negro” volta à paleta mais recorrente do artista – vermelho, preto e azul – com o negro na forma do pássaro integrando-se ao azul e ao vermelho. Uma passagem do inferno para o céu? Uma sombra que se eleva do inconsciente?

Os pássaros, em sua forma arquetípica, remetem à liberdade do voo, da quebra de limites e barreiras. A transcendência é o “ir além” dos limites do humano, a tentativa (e segundo alguns, o alcance) de se integrar ao Mistério do Mundo, que antecede o nascimento de cada um e o nascimento da própria espécie humana. A referência direta à transcendência do humano em “Divindade” e “Representação do Sagrado Primitivo” é uma forma de imanência através da arte, pois é em si mesmo que Bettiol investiga se é possível a superação do físico para algo além. Em ambas as obras, é o sagrado primitivo, manifestado nas relações formais da arte que o artista recusa em encontrar explicação racional e que descobre, como tantos outros fizeram antes, que o que liga a arte à religião é o mistério da vida. Bettiol escolhe sentir esse mistério em vez de explicá-lo, e o faz por meio de sua arte.

Enfim, a arte de Bettiol é uma ferramenta que confunde-se, no entender do próprio artista, com o desenrolar da sua vida e que o faz continuar vivendo, assim como sua vida ajuda-o a continuar produzindo suas pinturas.

Bettiol assume que suas pinturas, juntas, perfazem uma biografia de sua alma. Neste recorte, assume sua condição de ser em eterna mudança. Bettiol busca a transmutação da matéria da pintura para um mundo particular, para o qual nos convida, sem fechar interpretações, mas levando-nos num voo panorâmico sobre sua dor, prazer e contemplação de uma beleza conquistada, nada fácil. Sua esperança é que possamos contemplar nossa própria vida, um pouco como ele faz com a sua, e extrair beleza das dores que já passaram e das que inevitavelmente virão.

Fábio San Juan
11 de janeiro a 04 de fevereiro de 2016